sexta-feira, 27 de abril de 2012

O Piano*


O piano, no meio da sala deserta, preto e imponente, reflectia a luz que entrava pela janela com cortinas velhas e rasgadas. Tudo o resto nessa sala era velho, sem cor e sem alma. Da janela viam-se as árvores a perderem as folhas em pleno Outono. 


Martim, que fazia aquele percurso desde que entrou para a primeira classe, um mês antes, nunca tinha reparado na casa. “Era velha, parecia abandonada”, pensara. Parou e começou a prestar atenção aos pormenores da casa. A pintura estava gasta, tinha uma arcada no piso térreo que funcionava como uma espécie de embasamento e no primeiro andar vários varandins com balaústres muito simples, quase sem decoração, que continham janelas a sustentar cortinas amareladas pelo pó e luz solar que apanharam durante anos a fio; estavam rasgadas mas nada se avistava para o interior. A porta, de madeira pintada de verde, estava gasta e descascada. Era uma porta alta mas parecia muito frágil. O rapaz, com toda a sua curiosidade a ferver-lhe nas veias, ansiava por entrar, mas, por outro lado, tinha medo do que poderia estar lá dentro. Era final de tarde e tinha de ir para casa ou ouviria sermão de seus pais. Todo o caminho até sua casa não conseguia tirar aquela imagem da sua mente, estava intrigado e tinha de lá voltar. Tinha de entrar na casa, mas para isso tinha de ter coragem. E Martim considerava-se um rapaz valente e corajoso, mas nunca tivera tamanho desafio em toda a sua vida. 
Passaram dias sem poder lá voltar sozinho: ora porque voltava com colegas das aulas para casa, ora porque tinha trabalhos de casa para fazer e descuidar-se na escola estava fora de questão. Martim estava a dar em doido com a curiosidade que se apoderava dele. Não podia contar a ninguém sobre tamanha descoberta. Era o seu segredo. Algo o intrigava e puxava para conhecer melhor o que estava lá dentro, quais os seus segredos ou o que guardara. Uma semana passou, após o seu primeiro e ténue contacto, e Martim lá conseguiu voltar à porta da casa abandonada. Era um momento pelo qual ansiava há dias e, portanto, tinha-o bem delineado na sua mente. Sabia perfeitamente o que teria de fazer. Mas o nervosismo e inquietação eram tão fortes que bloquearam momentaneamente todos os seus pensamentos. Abanou a cabeça como se tentasse libertar os pensamentos e ganhar novamente consciência e controlo do seu corpo. 
Com um misto de astúcia e brusquidão empurrou a porta e, acto contínuo, a porta abre-se. Sentiu a adrenalina a tomar-lhe conta do corpo. Sentia o coração a bater tão aceleradamente que parecia que lhe ia sair pela boca. Martim nunca se sentira assim. Circunspecto, deu dois passos e estava dentro da casa que tanto o intrigava. “Tenho de me acalmar”, sussurrou, não fazia sentido estar assim, “é apenas uma casa abandonada”, pensou, tentando assim tranquilizar-se. Sentiu-lhe um leve cheiro a mofo bem como um trago empoeirado, normal de uma casa fechada há bastante tempo, mas ainda conseguia detectar no ar o cheiro adocicado da madeira. Perscrutou o átrio da casa, à sua frente viu uma escadaria larga, toda em madeira branca, que conduzia para o andar de cima, à sua esquerda avistou a cozinha e à sua direita encontrava-se uma sala com imensos livros. Apesar de ser uma casa com cor e tonalidade cinzenta, “nem está má”, balbuciou. Era uma casa com louças e decorações antigas, sem exageros, mas requintada. Deslocou-se para a sua direita, até à sala, e o chão de madeira ia rangendo a cada passo. Era uma sala repleta de livros, sentia-lhes o cheiro e conseguia ver as camadas de pó que os camuflavam e tornavam complicada a leitura das capas. “Uma biblioteca!”, disse pasmado. Não era normal, pelo menos nas casas que Martim frequentava, ver uma biblioteca numa casa, mesmo que pequena. Perdeu alguns minutos a percorrer a sala, não que ela fosse grande, mas porque estava siderado em tamanha descoberta. Chegou ao fundo da sala e viu uma pequena porta que com certeza daria para outro compartimento da casa. Abriu-a e ficou atónito, era uma sala bem mais iluminada que o resto da casa e no centro destacava-se um imponente piano. Nada mais. “Meu Deus!”, disse ainda a recuperar da estupefacção, “que belo piano”. Queria tocar-lhe. Dirigiu-se, sem largar os olhos do instrumento, até ao centro da sala e quando estava a dois passos de lhe tocar, acto contínuo, as teclas do piano começaram a mexer. Martim estremeceu, ficou abismado, sentiu os seus músculos a entorpecer. Estático e sem se conseguir mover, o rapaz fitava de olhos arregalados as teclas do piano cintilante. Estava perplexo. Sentia a música mas não a ouvia; era angelical. Tentou gritar para se libertar do estado de transe, mas saiu apenas um grito oco, sem som. As teclas mexiam-se a um ritmo cada vez maior. Martim, não se sentia dono do seu corpo nem das suas acções, não conseguia desviar o olhar do piano; via-o com todo o seu esplendor e luminosidade. “Mas que raio se estava a passar? Porque não se conseguia mexer? Porque é que sentia o seu corpo longe, como se alma e corpo estivessem a andar em direcções distintas. E, acima de tudo, como era possível estar a presenciar aquele momento transcendente?”, questionava-se. O cheiro adocicado que minutos antes sentira desaparecera, dando lugar a um cheiro nauseante. Frenéticas, as teclas do piano pareciam não parar, pelo contrário; se de uma peça se tratasse, este seria certamente o clímax. Martim quase a perder as forças, sentia-se perdido e sem saber o que fazer. O seu corpo não respondia e sentia-se fraco, pronto a desistir de tentar contrariar o que quer que fosse aquilo. Nesse momento, conseguiu vislumbrar as teclas a suavizarem o seu ritmo. Já não era um ritmo frenético, era, sim, um ritmo ponderado e a perder velocidade até que a última nota soou na cabeça de Martim. Pum!



Adelaide, que estava na cozinha, assustou-se com o estrondo que viera de lá de cima. Aflita, deixou cair a tigela que tirara da prateleira, e correu em direcção ao primeiro andar da casa. Ela sabia muito bem de onde viera aquele barulho estrondoso. Temendo o pior, abriu a porta do quarto e viu o seu menino deitado no chão, inconsciente. A soluçar, pegou no seu telemóvel para pedir ajuda médica, em seguida telefonou ao marido “o Martim teve outro ataque, vai rápido para o hospital!”, disse a chorar ainda não habituada às apoplexias do seu filho, que haviam começado uma semana antes. Enquanto se dirigia para o hospital, rezava para que o tumor não o tivesse matado. Tinha de haver salvação para Martim! “É demasiado novo para mo tirares de mim”, disse, olhando no vazio, com algum rancor.




*Texto elaborado para o concurso "Conte Connosco", do Banco Santander, obtendo o 3º lugar.